Olá, leitores do Letronomia.
Sim, sei que estou em falta (e muita!) com
vocês.
Resolvi recomeçar as postagens do Letronomia,
trazendo à baila algumas discussões envolvendo o cenário
político/social/cultural/econômico do Brasil. O interesse maior do Letronomia é
a divulgação científica acerca da Linguística e suas diversas áreas de pesquisa.
Entretanto, sendo a língua um objeto social, através do qual interagimos e
afetamos diretamente a realidade e as outras pessoas, faz-se necessário
apresentar também a forma como, através dos estudos linguísticos, podemos
perceber e compreender certos valores e sentidos disseminados pelos discursos
Brasil afora.
Vamos começar com uma simples noção, relacionada
ao eixo paradigmático, apresentado
ainda por Saussure, em seu Curso de
Linguística Geral. Não se lembra do que se trata? Então dá uma olhadinha
rápida aqui.
Relembrou? Então vamos prosseguir. O que
acontece é que, apesar de o sistema linguístico nos fornecer diversos itens que
podem ser selecionados (relação paradigmática)
e relacionados entre si (relação
sintagmática), essa seleção não é arbritrária, muito menos isenta de certo posicionamento ideológico. Isso quer
dizer que, ao tomar a palavra, ao produzir seus textos, o sujeito faz uso de
determinadas escolhas lexicais,
preferindo umas às outras. Em algumas teorias, essa escolha não é completamente
consciente. No entanto, as escolhas lexicais acabam por transparecer
determinados julgamentos de valor e posicionamentos ideológicos por parte do
locutor. Esse tipo de pesquisa é produzido no interior das correntes enunciativas,
nomeadamente, na Análise do Discurso.
Vamos nos valer de um exemplo de um
analista do discurso. Antes, contudo, diremos, simplificando, que a ideologia é um ponto de vista acerca do
mundo e da realidade, a forma como um indivíduo ou grupo entende a vida.
Futuramente, prometo apresentar uma definição mais completa e complexa, mas,
por ora, essa explicação basta.
Fernandes (2008) realizou uma pesquisa sobre os sentidos atribuídos aos
termos “ocupar” e “invadir”, quando se referindo ao Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra. Por exemplo, se alguém disser:
(a)
MST ocupa fazenda no
Mato Grosso do Sul.
ou
(b)
MST invade fazenda no
Mato Grosso do Sul.
notamos que ambos os enunciados se
referem ao mesmo fato do mundo real. Entretanto, será que eles realmente
significam a mesma coisa? A resposta é óbvia, não é mesmo? Ao escolher dizer “ocupar”,
o sujeito parece se posicionar a favor do MST, mas, ao dizer “invadir”, um
verbo que denota um julgamento de valor negativo, fica claro que o sujeito não
é simpatizante do MST.
Ou
seja, mesmo algumas escolhas lexicais representam julgamentos de valor,
fornecendo pistas acerca do posicionamento ideológico, a visão de mundo
compartilhada pelo sujeito.
Vamos, agora, partir para o
exemplo trazido no título da postagem. Alguns eleitores (digo, leitores! – será
um ato falho?) defenderão que o que ocorreria, na verdade, seria um
contingenciamento das verbas destinadas às universidades, locais em que se
realizam balbúrdias, pelo jeito. Para outros eleitores (errei de novo!),
poderia se tratar de um corte, um verdadeiro ataque à produção científica e
acadêmica em nosso País. Trata-se do mesmo fenômeno no mundo real, mas a língua
não serve como um espelho da realidade, como pretendiam alguns filósofos
clássicos. Antes, ela acaba por revelar a forma como cada indivíduo ou grupo
compreende o mundo e, aí, entra a noção de ideologia, que chegou aos estudos
linguísticos através da Análise do Discurso, ao sofrer influências da filosofia
de base marxista.
Ao demonstrar posicionamentos
diferentes, a língua auxilia tanto na disseminação de ideologias quanto nas
lutas hegemônicas. Cabe ao linguísta que se debruça sobre o discurso averiguar,
analisar e descrever empiricamente como se dão os processos de construção e
desvelamento de sentidos através desses discursos que tentam naturalizar o que,
de fato, é questionável, e muito.
Este post, bem ao contrário dos
demais, apresenta forte teor ideológico e posicionamento político. Como
linguísta, enquanto cientista, estudante de doutorado, bolsista e professor
universitário em uma universidade pública, não posso deixar de me posicionar,
pois os cortes que foram anunciados, e alguns efetivados, mesmo que os
políticos “voltem atrás”, revelam uma triste realidade: a falta de investimento
na educação e na ciência, pilares de uma nação democrática e desenvolvida.
Gostaram dessas discussões? Então
não deixem de participar, aqui no blog ou lá na página no Facebook.
Novidades, críticas, comentários,
dúvidas e outros posicionamentos ideológicos podem ser deixados ali embaixo,
mas tomem cuidado com as escolhas lexicais!
Aproveito para agradecer a todos
pela paciência e fidelidade à página e ao blog!
Referências
FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso - reflexões
introdutórias. 3. ed. São Carlos: Claraluz, 2008.
ORLANDI, Eni
Pulcinelli. O que é linguística. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.
POSSENTI,
Sírio. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIM,
Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução
à linguística. Fundamentos Epistemológicos. Volume 3. São Paulo: Cortez,
2004.
SAUSSURE,
Ferdinand de. Curso de Linguística Geral.
São Paulo, Cultrix: 1975.
IMAGEM: foto de Adriano Machado/Reuters, publicada na revista Exame.
Disponível em https://exame.abril.com.br/economia/qual-e-afinal-a-diferenca-de-corte-e-contingenciamento/